CRIME QUE SE CONFUNDE COM PAIXÃO: A IMPORTÂNCIA DE CLASSIFICAR AS DIVERSAS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Elizabeth Fleury, uma das organizadoras do Dicionário Feminino da Infâmia, sobre o nome do livro, disse: “Quis criar o impacto de duas verdades.” A primeira verdade seria a do “feminino” como símbolo da delicadeza, a segunda a da “infâmia” como representação da má reputação. Verdades que se cruzam quando relações de poder transformam em infame o que é feminino – mas, para entender isso, é preciso ir além do nome do livro.
E foi, também, para que mais pessoas ultrapassassem a capa do Dicionário, que Elizabeth escolheu chamá-lo de “feminino” e não de “feminista”. Em tempos nos quais algumas correntes de pensamento, incluindo as feministas, têm sido criminalizadas, a autora não queria correr o risco de ter a publicação rejeitada antes de ser conhecida. Elizabeth explica: “Precisamos agregar a sociedade, não dividi-la em arqui-inimigos.”
O cuidado investido no batizado do dicionário organizado por Elizabeth e Stela Meneghel é apenas um exemplo da seriedade com que as pesquisadoras encararam a missão de dar nomes. Engajaram-se com elas mais de 100 outros profissionais, também autores da obra. O livro nascido desse esforço reúne quase duas centenas de verbetes que tratam de temas ligados a desigualdades entre homens e mulheres, e as lutas feministas pela sua superação.
O Dicionário Feminino da Infâmia faz parte da exposição de março da Galeria de Arte da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), e está ao lado de objetos, recortes e vídeos que contam as histórias dessas lutas que garantiram direitos hoje consolidados, como o do voto e o do divórcio.
A mostra, bem como o evento Sempre vivas - Mulheres em luta contra a violência, integra a extensa programação que a ALMG preparou para o mês de março, para comemorar o Dia Internacional da Mulher, celebrado no dia 8. Todos esses eventos salientam as conquistas e as reivindicações femininas ainda sem resposta. E a história nos mostra que apenas dando nomes às situações que devem ser superadas, será possível avançar.
A naturalização de agressões
Chamar de “passional” a violência física contra mulheres impetrada por homens com os quais elas se relacionavam, por exemplo, já ajudou a naturalizar agressões por décadas.
Segundo o documento “Panorama da Violência contra as Mulheres no Brasil”, publicado em 2018 pelo Senado Federal, até a década de 1970, esse tipo de ofensiva era considerada aceitável pela população na medida em que fazia parte apenas da esfera privada. É a representação do dito popular que reitera que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”.
“Ah, mas mete sim” – começaram a dizer os movimentos feministas que ganharam força naquele período. Essas vozes foram ainda por muito tempo ignoradas pelo Estado, que, assim, permitiu a vitimização de muitas mulheres. É o caso de Lidiane Barbosa, hoje com 37 anos. Em sua infância, ainda na década de 1980, ela presenciou seu pai agredir inúmeras vezes a sua mãe.
Ela disse que: “Para mim era normal aquilo. Minha mãe sempre contava histórias de pessoas que passavam as mesmas situações. A minha tia, irmã do meu pai, passava pelas mesmas situações. Então eu achava que era normal.”
Claro que Lidiane, como filha, também sofria. Ela conta sobre os dias em que o pai trancava mãe e filha do lado de fora da casa: “Eu tenho pavor de Natal e Ano Novo. Nunca passei um em que meu pai não xingava, jogava a comida fora e fazia a gente dormir na rua.”
Ela cresceu um pouco e a situação piorou. Adolescente, sofreu violências sexuais dele, e de amigos que ele levava para casa quando a mãe dormia longe em função do trabalho na
residência de uma família que vivia em Belo Horizonte, enquanto Lidiane e o pai ficavam em uma cidade da Região Metropolitana. Viveu assim dos 13 aos 18 anos.
Já perto de completar a maioridade, Lidiane preferia ficar na rua. O pai chegava e ela saia, dormia no quintal de uma casa bem em frente a sua. Os vizinhos, de madrugada, passavam para pegar o primeiro ônibus da manhã que levava para a Capital, por volta de 4h30. Viam Lidiane e comentavam: “Ah, o pai dela bebeu de novo.” E iam embora sem fazer nada.
Quando ela resolveu ir embora definitivamente, já grávida do então namorado, apanhou do pai que correu atrás dela na rua, e a surrou com um pedaço de pau. Foi instruída pela vizinha que a socorreu a não denunciá-lo.
Quem ama não mata
Naquela época, essas histórias só saiam do âmbito privado quando a violência chegava ao extremo do assassinato. Eram então chamadas de “passionais” e, muitas vezes, rendiam absolvições judiciais dos autores que teriam agido “em defesa da honra”. Um exemplo que ganhou as primeiras páginas dos jornais foi o assassinato de Ângela Diniz, em dezembro de 1976.
A socialite mineira levou três tiros no rosto e um na nuca do namorado, Doca Street. Ao ser julgado, o réu foi condenado a apenas dois anos de prisão, que foram convertidos em liberdade assistida.
As mulheres não aceitaram. Elas se reuniram, se manifestaram, organizaram-se e gritaram “quem ama, não mata”, expressão que deu nome ao primeiro grupo feminista integrado por Elizabeth Fleury, hoje autora do Dicionário Feminino da Infâmia. Foi por essa pressão popular que o primeiro júri foi anulado, e um novo julgamento rendeu ao autor do crime uma pena de 15 anos de prisão.
E foi assim que as mulheres exigiram o reconhecimento de que não existe “crime passional” e sim “violência de gênero”. Afinal, o amor não mata, o poder sim.
A hierarquia entre gêneros e a violência
O termo que tem diferentes definições, “violência de gênero”, a depender da corrente de estudo, pode ser caracterizada, em qualquer dessas correntes, como violência produzida por causa da hierarquia entre os gêneros. Ou seja, histórica e culturalmente, homens acumularam mais poder nas relações sociais diante das mulheres, e, assim, as relações entre ambos são, muitas vezes, marcadas por dominação, de onde vêm as violências.
Uma das grandes conquistas na sociedade brasileira, na luta pelo reconhecimento desse tipo de repressão, foi a admissão legal do que hoje chamamos de “feminicídio”.
Isso só aconteceu quando foi sancionada a Lei Federal 13.104, de 2015, que aumentou a pena para os assassinatos qualificados como feminicídio. Para isso, não basta que a vítima seja uma mulher, é preciso que a motivação do crime seja o fato de ela ser mulher.
E o que esse crime tem de diferente do homicídio? Se no homicídio as pessoas são mortas em um assalto, por exemplo (neste caso, um latrocínio), no feminicídio a mulher é assassinada simplesmente por querer terminar um relacionamento ou usar uma determinada roupa. Ela é morta pelo simples exercício da sua individualidade.
No caso de Ângela Diniz, ela foi morta por ser “bonita demais” e acabar “chamando a atenção de outros homens”, que não o seu então namorado – ou "dono", como ele se julgava. A palavra-chave é posse.
Ao dizerem um basta à aceitação da sociedade dessa relação, os movimentos feministas das décadas de 1970 e 1980 conseguiram não só alterar decisões judiciais, como no caso da Ângela Diniz, mas também começar a criação de uma rede de apoio às mulheres vitimadas.
Esse processo passou por várias etapas, e a Lei do Feminicídio foi um dos seus ápices. Um primeiro exemplo foram as Delegacias de Defesa da Mulher, que começaram a ser inauguradas em meados da década de 1980. Além de um reconhecimento público oficial da violência de gênero, as delegacias também revelavam que o assassinato era apenas o ponto final de uma violência que começava muito antes.
Discussões nos meios acadêmicos, nos movimentos sociais e entre gestores de políticas públicas, ao longo das décadas seguintes, elaboraram conceitos mais complexos para entender e, a partir daí, criar soluções para reduzir progressivamente o problema, que agora não era mais privado, e, sim, uma preocupação pública.
Um dos conceitos mais importantes é o ciclo da violência, nome que a psicóloga americana Lenore Walker deu às etapas que se repetem em relacionamentos abusivos. Seriam três fases. A primeira é marcada por um aumento de tensão entre os envolvidos, que culmina com uma violência.
Depois, há um afastamento entre os envolvidos, em geral casais com envolvimento amoroso, a segunda fase. Na terceira fase, há um processo de reconciliação, muitas vezes chamado de lua de mel, que vai aos poucos se apagando e voltando a se tornar tensão – e o ciclo se reinicia.
Essa violência, que marca a passagem da primeira para a segunda fase, não é necessariamente física. Ela pode ser, por exemplo, psicológica. Ou patrimonial. Ou simbólica. Se a física já é amplamente reconhecida e rechaçada, as demais violências de gênero começaram só recentemente a ser compreendidas pela população, o que é o primeiro passo para evitar que o ciclo termine com o feminicídio.