Foi um ano especial na CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto. Primeiro, a retomada das atividades presenciais, após dois anos exclusivamente online; depois, a celebração à cultura dos povos originários, com extensa presença de artistas indígenas mostrando filmes, realizando rituais, vendendo artesanatos e discutindo seus processos de criação em mesas de debate e rodas de conversa; por fim, o reencontro de profissionais dos três eixos do evento (História, Educação e Preservação) para elaborarem planos, pensarem perspectivas e avaliarem os rumos do audiovisual brasileiro de ontem e de agora adiante. A 17a edição da Mostra termina com a força da presença e com a efervescência das ideias.
Se a fisicalidade dos corpos representou o protagonismo em 2022, nada mais simbólico do que a Mostra retornar ao começo de tudo e abrir as portas para a filosofia, o pensamento, os anseios, as tradições e a existência dos povos indígenas. Enfim retomando para si seu próprio protagonismo, esses povos e suas tantas singularidades estrelaram a maior parte dos trabalhos no evento, dentro e fora das telas. O que mais se sentiu foi que suas energias e espiritualidades encontram, cada vez mais, as reverberações que por tantos séculos lhes foram retiradas, na maioria dos casos com extrema violência. A realização de oficinas de vídeo e o entendimento do audiovisual como extensão de sobrevivência se tornaram fundamentais para a fase que se vive agora.
O cineasta xavante Divino Tresewahú, por exemplo, exaltou a prática de produção audiovisual indígena como uma ação concreta de luta para vários povos e sob diversas frentes possíveis de batalha. “A sociedade brasileira sabe que existem os indígenas no Brasil, mas sabe pouco das culturas, das tradições, da luta e dos direitos”, afirmou Divino na 17ª CineOP. “As imagens que a gente produz muitas vezes são tanto para a nossa visibilidade quanto para expressarmos nossos modos de vida”.
Para Divino, essa relação se estabelece não só a partir do cinema, mas também das redes sociais, verdadeiro espaço de guerrilha virtual para povos que constantemente são ignorados pela grande mídia tradicional. O cineasta acredita que o audiovisual garantiu a ele e a outros companheiros o que ele chama de “vários futuros”. “Eu precisava aprender a editar, a escrever roteiro, e me esforcei muito para conquistar isso”, relembrou ele, que exibiu na CineOP o documentário “Abdzé Wede´Õ – Vírus não Tem Cura?”.
Experiência similar tiveram Kuaray Poty (Ariel Ortega) e Pará Yxapy (Patrícia Ferreira), a dupla homenageada esse ano pela CineOP. Indígenas guaranis, ambos participaram de oficinas do projeto Vídeo nas Aldeias na segunda metade dos anos 2000 e adotaram a produção de imagens como um dos movimentos importantes de seus interesses pessoais e coletivos. Como no caso de Divino, Poty percebia o mesmo preconceito e desconhecimento dos não-indígenas. “Senti que era necessário contar nossa história, mostrar que sempre estivemos ali nas nossas terras, que nossos antepassados já estavam lá e que a colonização usurpou nossos espaços”, disse o cineasta.
A partir das oficinas de vídeo, Poty se sentiu retomando a própria história e encontrando a possibilidade de levá-la aos não-indígenas ao seu modo. “Vislumbrei como seria o futuro dos nossos povos fazendo filmes sobre seus modos de viver, nossas lutas, nossa cosmologia. Era a primeira vez que tínhamos a oportunidade de sermos vistos a partir do olhar de dentro, nosso, e não pelo olhar de fora do homem branco”, comentou. No momento, Poty prepara seu primeiro longa de ficção e espera poder alçar voos cada vez mais ousados na criação audiovisual, ao conectar a visibilidade dos guaranis a seus desejos criativos.
Pará Yxapy também fez as oficinas do Vídeo nas Aldeias e teve como principal impulso pessoal a quase ausência feminina nas aulas. “As mulheres tinham participação muito ativa em todo o funcionamento da nossa aldeia, mas, na oficina de vídeo, elas quase não apareciam, e isso me reforçou a vontade de fazer parte daquilo”, contou ela, numa roda de conversa na CineOP. “Me coloquei esse desafio mesmo sem saber se permaneceria até o fim. A experiência ampliou meu entendimento pessoal e profissional dentro dos meus convívios”.
O cineasta Vincent Carelli, um dos principais nomes por trás do Vídeo nas Aldeias, relembrou o quanto foi revolucionário para diversos povos indígenas o contato com a câmera e a possibilidade de registro de sons e imagens, quando ele começou a ministrar as oficinas há mais de duas décadas. “Foi uma catarse, uma euforia, um entusiasmo muito grande”, comentou. Inicialmente, a relação era com a simples criação de imagens, sendo a ideia de “cinema” algo que viria posteriormente. Um dos primeiros impactos dos indígenas foi imaginarem como teria sido para seus antepassados terem podido registrar tradições e ritos, inclusive orais, para as gerações seguintes. Já era uma preocupação com a memória.
Num segundo momento, diante da forma reducionista como se tratavam os indígenas na mídia e no cinema, os oficineiros saíam em busca da reconstrução de sua autoimagem. “Eles encontraram formas para a ‘revivência’ de suas memórias e experiências”, disse Carelli. Ou seja, até mesmo o conceito de memória apareceu reconfigurado por essa experiência originária na CineOP – uma memória de outros tempos, não só concretos, muitas vezes de espíritos e de energias em circulação.
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