Nesta postagem o ilustre acadêmico da Casa de Cultura - Academia Marianense de Letras/ Danilo Gomes - envia crônica em homenagem à Matriz das Gerais, ao saudoso inspirador do Dia de Minas: Roque Camêllo; palavras de conforto e esperança em Deus e em Nossa Senhora do Carmo, mãe dos carmelitas e Padroeira de Mariana.
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MARIANA DA MINHA PERPÉTUA SAUDADE
Danilo Gomes
“Minha mão conduz a pena ligeira como o vento propício impulsiona o veleiro leve. (…) Meu coração escorre pelo bico da pena. Faço reviver os meus mortos com simplicidade, recordo tranquilo momentos de luto e de mágoa.”
(Augusto Frederico Schmidt, no livro de memórias “O galo branco”.)
Nasci em Mariana em 1942. Um privilégio, uma graça de Deus Nosso Senhor. A parteira foi Dona Amélia, que conheci ainda em atividade. Era o dia 30 de dezembro, às 9 horas da manhã. Em casa de meus pais, Daniel e Dorita, na Av. Salvador Furtado, perto da Pensão Souza, de Dona Ritinha e Sô Altivo, dos quais me lembro com nitidez. Sobre aquele tradicional e famoso estabelecimento, o artista plástico e professor Eduardo Campos publicou precioso livreto intitulado “Histórias e causos da Pensão de Dona Ritinha”. O casal era muito amigo de meus pais e Dona Ritinha ia sempre lá em casa, para conversar e tomar café com queijo, brevidades e quecas, com minha mãe, na cozinha, bem à vontade.
Ter nascido e passado a infância em Mariana foi um lance de sorte do destino, digamos assim, e é uma sensação mágica, que o correr dos anos (e já são 77) vai aguçando, no meio de um doce brumado de lembranças.
Foi uma infância feliz, Deus louvado! Tive a sorte de ter duas excelentes professoras: Nívia Maria Santos (aulas particulares, no seu sobrado-solar da Rua Direita, ao lado da Sé) e Didina Vieira (no G.E. Dom Benevides).
Na Praça Dr. Gomes Freire (foi Prefeito, não era meu parente), conhecida por Jardim de Cima, com seu coreto e seu lago de peixes, eu e amigos brincávamos de faroeste, com revólver niquelado, pequeno (e com espoletas), como se fôssemos Roy Rogers, Hoppalong Cassidy, Joel Mc Crea, Tim Holt, Charles Starret (que, todo de preto e com máscara negra, se transformava no heroico Durango Kid, o implacável Cavaleiro do Bem, a liquidar cruéis bandoleiros). Copiávamos, a nosso modo de fábula, no imaginário, o que víamos nos filmes do Cine Theatro Central, dos irmãos Tropia, que era o nosso Cinema Paradiso. Um dos meus companheiros de aventuras no “Velho Oeste” do Jardim de Cima era Jeronymo Wathos Mol Santos, filho de Dona Tancinha, moradora em casarão da praça, que fazia um inesquecivelmente saboroso e vistoso bolo grande de pão-de-ló, como nunca mais vi e saboreei igual.
Eu gostava de, cortando a Rua Direita à altura da casa do meu amigo Tasso Túlio Mol Muzzi, subir a ladeira que leva às igrejas do Carmo e de São Francisco e à então Prefeitura e Câmara Municipal. Para quê? Para ouvir o “canto” metálico da araponga da casa de Monsenhor Alípio. Aquele sonoro ruído parecia uma martelada. Sim, como se alguém malhasse a bigorna com um martelo. A araponga de Monsenhor Alípio (os mais velhos se lembram) era já um patrimônio da cidade, como a seriema rueira de Dona Ritinha.
No conto “Rikki- tikki-tavi” de seu “O livro da selva”, o escritor anglo-indiano Rudyard Kipling (que eu iria ler décadas depois) nos narra:
“A araponga é um pássaro que faz um barulho exatamente igual à batida de um pequeno martelo numa panela de cobre, e faz isso porque é o arauto de todos os jardins na Índia e conta as novidades para quem quiser ouvir.”
Pois é, em Mariana, deliciadamente, a gente apurava os ouvidos entre a bigorna e a pancada do martelo ornitológico da hoje quase legendária araponga daquele largo, atualmente Praça Minas Gerais. E a tarde seguia lindamente azul no céu marianense da minha meninice. E tudo parecia durar para sempre, eternamente –até a araponga.
Minha infância terminou em março de 1953, quando fui estudar interno no Colégio Dom Bosco, em Cachoeira do Campo. Primeira calça comprida, a espartana disciplina clerical salesiana e o caricioso olor, o perfume arcádico e silvestre dos altos eucaliptos.
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De outro companheiro de infância, que também já partiu (como Jeronymo), Roque Camêllo, não posso, não devo e não quero deixar de escrever nestas linhas de reminiscências.
Como se sabe, foi ideia de Roque José de Oliveira Camêllo, em 1977, a instituição do Dia de Minas Gerais, em 16 de julho, com base no dia de fundação da cidade de Mariana, primeira vila, cidade, comarca e capital de Minas e seu primeiro bispado.
No seu depoimento para o livro “O Roque Camêllo que eu conheci”, o ex-Procurador-Geral da República, Dr. Aristides Junqueira Alvarenga (que foi colega de Roque, a partir de 1º/ 3/1953, no Seminário Menor de Mariana) , escreve:
“Por ter nascido no berço de Minas Gerais, Roque conseguiu, por meio de lei sancionada em 19 de outubro de 1979 pelo Governador Francelino Pereira, tornar realidade seu ideal de criação do “Dia de Minas Gerais” a ser comemorado no mesmo dia do aniversário de Mariana. Conseguiu mais: em 1997, pela Emenda nº 22 à Constituição do Estado de Minas Gerais, o Governo de Minas continuasse a se transferir para Mariana no dia 16 de julho de cada ano.”
E arremata, emocionado:
“A fulgurante vida do meu colega de infância não se apagou em 18 de março de 2017, aos seus 74 anos de idade. Brilhará sempre !!!”
Roque Camêllo, sempre gentil e sumamente simpático, imantava das suas auras positivas aqueles que dele se acercavam, não distinguindo credo, raça, cor, ideologia, posição social. Fez uma legião de amigos.
Cumpre recordar aqui o trabalho persistente do ilustre historiador Waldemar de Moura Santos, primeiro Presidente da Academia Marianense de Letras-Casa de Cultura, um outro apaixonado pela nossa cidade e suas tradições. Um benemérito da cidade, do município. E meu saudoso amigo e mestre. Foi um operoso parceiro de Roque.
Roque Camêllo deixou-nos livros de sua lavra, dentre eles o monumental “Mariana – assim nasceram as Minas Gerais: uma visão panorâmica da História”. Essa obra admirável, resultado de intensos estudos e de uma afeição sem limites pela cidade natal, já nasceu clássica, digna de compor a seleta Coleção Brasiliana.
Sobre o saudoso Roque temos dois livros importantes e fundamentais: “O Roque Camêllo que conheci”, organizado pelo Dr. Mário de Lima Guerra, e “Tributo ao Professor Roque José de Oliveira Camêllo”, do Dr. Arnaldo de Souza Ribeiro, com valioso prefácio do Dr. Francisco José dos Santos Braga, farol de cultura que nos ilumina, tendo como centro de operações sua natal São João del Rei.
Roque Camêllo, professor, advogado, escritor, acadêmico, figura modelar e exemplo para todas as gerações, merece todas as homenagens dos marianenses e do povo mineiro. Sua viúva, a jornalista Merania Oliveira, cultua com carinho sua memória e seu inestimável legado cultural.
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Devido à presente temporada cruel de pandemia do coronavírus que assola o mundo, não teremos neste ano as tradicionais e festivas comemorações do dia 16 de julho. Mas não deixamos de celebrar o grande dia. Nesse sentido, a Academia Marianense de Letras, Ciências e Artes, hoje presidida pela professora e escritora Hebe Rola, e tendo como Vice-Presidente o poeta e professor Donadon-Leal, promove, em boa hora, o evento comemorativo do qual, como marianense e acadêmico, tenho a honra e o júbilo de participar.
Quanto à pandemia de covid-19, o vírus que já ceifou tantas vidas mundo afora, transmito aos amáveis e pacientes leitores desta longa crônica memoriaslística as palavras finais do artigo de dois professores da USP, Mozart Neves Ramos e Francila Novaes, no “Correio Braziliense” de 2-7-2020 , sob o título “Este não será um ano perdido”:
“Uma coisa é certa: este não será um ano perdido. Muito pelo contrário: estamos aprendendo muitas outras coisas. Entre elas, saber como lidar com o desconhecido. Apesar do sofrimento, medo e angústia, voltaremos mais fortes.”
São palavras de conforto e esperança, de fé em Deus e em Nossa Senhora do Carmo, mãe dos carmelitas e Padroeira de Mariana.
Vamos vencer a borrasca, a tormenta, o mar revolto e encapelado, cheio de raios e trovões assustadores, como no tempo das caravelas. Oremos, irmãos:
“São Jerônimo, Santa Bárbara Virgem, lá no céu está escrito, entre a cruz e a água benta: Livrai-nos, Senhor, desta tormenta!”
Amém, que repiquem nossos sinos barrocos, na Sé Catedral, São Francisco, Carmo, Mercês, Rosário, Santana, Confraria, São Pedro.
E, por derradeiro, um vislumbre radioso de poesia em prosa, um pequeno madrigal de esperança. É a conclusão do editorial de uma revista portuguesa, da Editora Bertrand, que de Portugal, onde mora (São Pedro do Estoril) me envia o escritor Ronaldo Cagiano, mineiro de Cataguases:
“Entretanto, lá fora, indiferente a tudo, a esplendorosa Primavera dança – talvez ao som de Bach.”
Brasília, 6/ 7 / 2020, dia do falecimento, aos 91 anos, de Ennio Morricone, autor da trilha sonora de “Cinema Paradiso” e outras obras-primas.
Danilo Carlos Gomes nasceu em Mariana, MG, em 30 de dezembro de 1942, filho de Daniel Carlos Gomes (tabelião) e Maria das Dores Motta Gomes (professora primária, ambos já falecidos. Tem cinco irmãos: Duílio, Darcílio, Daniel, Djalma e Maria de Fátima.
Nasceu em Mariana, MG, em 30 de dezembro de 1942. Mora em Brasília desde 1975. Formado em Direito (UFMG, Belo Horizonte, 1974) e Jornalismo (CEUB, Brasília, 1985). Escreve em jornais e revistas desde 1961. Tem crônicas, contos e poemas publicados em antologias. Casado, dois filhos. Publicou inúmeros livros. Pertence à Academia Mineira de Letras, Academia de Letras do Brasil, Academia Marianense de Letras, Academia de Letras de Viçosa, Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais e Associação Nacional de Escritores – ANE, sediada em Brasília. De 1985 a 2005, trabalhou na Secretaria da Imprensa e Divulgação da Presidência da República, como redator e revisor. Em 1997, recebeu da Prefeitura de Belo Horizonte, com outras pessoas, o título de Embaixador do Centenário de Belo Horizonte, cidade de que é Cidadão Honorário.
Foto: Divulgação / Danilo Gomes